27 outubro, 2008

O amanhecer visto duma colina azul



Havia já muito tempo que nenhum rei cantava à chuva e que, ao parar, se sentia glorioso. Agora, quando o último o fez, comoveu-me, pois lembrei-me de que a mutação do ego se acertava segundo as pégadas dos remorsos - mais mal, menos bem, mas sempre deixando-nos na mão do livre-arbítrio. Lembrei-me, então, de que éramos ambos fruto da própria consciência, e que ao deambular pela vida, nos tornávamos, todos, senão trilhos que o mundo e o tempo usam, e pelos quais passam, deslizando como refrões, estritamente paralelos. Sorrimos, porém.

22 outubro, 2008

Borboleta Monarca, Filme Noir

Era violeta futurista. - se bem que já nem algum futuro lhe restava, pois essa cor nas paredes, de 72, ainda sabia mais histórias do que as violetas nos prados. Encostou as têmporas na janela, quase que criando um vácuo entre o vidro e o ouvido, cujo timbre de repente estalou, e então sentiu como se o sangue enregelasse todo e se partindo, parecesse mil estalactites caindo. Apertou as pontas dos dedos, para condensar a dor subtilmente. E se alguém tivesse ali registado, numa máquina de escrever, esse compasso de vida, entre seus tracs, ruídos e carpidos, antes desse último ponto final, haveria de se saber que ele desviara as pálpebras repentinamente, e olhara a parede, cheio de intensidade nos olhos, e quando o cérebro girara apenas sobre as pupilas, elas se tornaram mais e mais profundas e cresceram e cresceram quase até rasgar a córnea, e que, ao vê-la, naqueles tons extraordinariamente qualquer coisa, semelhantemente cansados, e cansadamente vivos, pôde aperceber-se duma borboleta quase verídica, dançando na parede e chamando-o para se juntar a ela, enquanto rodopiava de novo sobre a tinta. Apercebeu-se da sua essência, e que ela sempre estivera rodopiando à sua volta, chamando-o para se juntar à dança da vida, como os sufis, os maori ou os índios. Apercebeu-se finalmente, se seria possível que ela nunca tivesse reparado na quão bela se torna, quando, rompendo o casulo, e, abrindo seus lençóis ao vento, decide viver continuadamente nele.

15 outubro, 2008

Agricultor sem uma cegonha

Orquestra: telhas de vidro e água corrente. Água a pique, que não tem braços para às nuvens estender, e, assim caindo. Céu aberto, em toda a sua noite encoberto. Continuou no corredor, com meias meio curtas e andou, em passos metódicos, sem certeza de se era uma distância. – ou eram os passos, ela própria. Quando andava, essa voz que raramente ouvia, fez vibrar as mil lombadas justapostas a seu lado, e tudo ressoou continuadamente, com o seu timbre de primavera. Não fosse a chuva, haveria então uma porta dando para o Éden, mas essa água do céu, que em mistério continuava tremendo no telhado, foi o que Pandora em mão nos ofereceu. Calou os seus passos e descansou o seu levitar. Ali parou, em lótus e em ferida. Tal como disse Eva, tratava-se de uma floresta profunda, não tão clara como pedira, mas tão sombria como sopusera.

08 outubro, 2008

-Me

E eu vim.
Vim para não dar,
Mais do que,
Perdido eu estou.
Eu não vim para matar.
Só cheguei para desatar,
Esta doçura de mágoa.
Sem pés para recuar,
Numa corrente vazia,
Num calar de bem calar,
Num silêncio de pedra.
Em cantado sem passado,
Embalou
-me, sem querer.

04 outubro, 2008

Dia Mau



Mas para quê gastar o meu tempo. A ver se aperto a tua mão. Eu tenho andado a pensar em nós. Já que os teus pés não descolam do chão.

01 outubro, 2008

Vaivém

E na rua, nesta rua de pedra
De calçada,
Perdida, cortada
E fendida;
Sem ter a mínima noção deste peso -
Destes pés, destas mãos...
Deste coração,
De mim, assim, dividido
Entre a razão e a manta.
Cada subida é de mais.

Então eu desci,
E eu vim, sempre a descer
Por estas ruas, de pedra,
De calçada.
Cantando estes fardos em gestação,
Convencendo os passeios,
De tudo de bom e,
Assim, dividido,
Entre a razão e a manta.
Cada descida é de mais.

E, no fim
Cortaste a rotunda, praguejando, toda nua,
Sempre despida em cor,
E nessa pele debotada
Pela escuridão,
Interior.