18 novembro, 2010

Ode triunfal em movimento lento

A passagem dos dias tornou-se quieta. Quieta. No canto da sala, escondida atrás dos móveis e da luz que ilumina, está a passagem dos dias. A passagem dos dias apoderou-se brutalmente da canalização que passa no canto da sala, e agora há uma infiltração que corrompeu a casa toda, a sala, a luz que ilumina, que se foi estendendo pelos tectos que cobrem a casa toda, a sala, a luz que ilumina, a sala toda, e que fez da sua presença a própria contagem dos dias, uma presença aterradora e brutal que faz os dias pingar pelos tectos e cair nos baldes, nas panelas, nos tachos, nos alguidares todos, até que a vida vai acabar por transbordar, todos sabemos disso, e inundar o próprio espaço - a casa toda, a sala inteira, a própria casa toda, e que vai diluir a luz que ilumina, numa perpetuação de reflexos difusos que se vão perdendo, que se vão distorcendo até não restar mais nenhuma memória dos dias, afundados no lodo que vai pairar no fundo da casa inteira, vigiados por espécies soturnas e macambúzias de fantasmas das profundezas que vão rondando a absoluta ausência da passagem dos dias.

Todos sabemos disso, e o Eduardo também sabe. Sim, no outro canto da sala é mesmo ele que está a assistir a esta pena terrível que o cobriu. Ainda ontem a infiltração estava a cinco pés do pé-direito, agora alarga-se ela própria sedutora e soberba, pelos tectos, ela própria como se fosse a onda triunfal da primavera a cobrir os campos, cá de baixo deste canto sinto que ela avança ameaçadoramente como se fosse conquistar a minha vida. E vai conquistá-la. Vai tomá-la de assalto, num assalto tão lento e húmido que ele fica sem forças para se levantar daqui e mudar de casa toda, de sala inteira, de ir lá fora ser iluminado pela luz que enche o espaço, mas estão fechadas as janelas inteiras. Tão lenta, ameaçadora, num compasso terrível que assombra qualquer tentativa de fuga, todos os movimentos tentam ocultar-se à sua presença, ao seu avanço, à sua conquista, todos os sopros são engolidos para dentro, todas as respirações são sufocadas, todas as comichões tornam-se torturas tristes, vai acabar também por tornar-se lodo, e os reflexos difusos vão afundar-se e cobri-lo, quando já forem a escuridão em forma de gente.

Além disso tirou as carpetes para que não ficassem molhadas e agora está sentado sobre o chão vazio e tem o cu frio, além disso não suportaria ter de pisá-lo com os pés descalços.

14 novembro, 2010

O direito ao mesmo do homem mais poderoso que os outros mesmos todos

A grande parada desce pelo mundo que não se sabe outro diferente para lá dele. A grande parada é um parque de diversões entretido sobre si mesmo. A grande parada torna todos os homens parte de si, e assim só fica a grande parada para assitir à perversa descida de si própria. Aí vão todos os homens para ali metidos, para dentro da grande parada, terreficados e iludidos, com o corpo inscrito à regra assombrosa que inscreve no mesmo movimento todos os corpos, para que não aterrorizem a sua ilusão e não iludam o seu terror, todos para ali assim metidos, para que não se desiludam nem se desaterrorizem, que a grande parada desce sempre, e quando acabar, há-de voltar. Que a grande parada quer-se para sempre - longa vida à grande parada! Amordaçados pela repetição festiva de um gesto terrível, que enche o palco do mundo de uma vida tremente, assim vão para ali metidos, para que não se oiça nem a sua ilusão nem o seu terror, que de tão iludidos e terreficados nem sequer sabem existir em si.

É absolutamente encantadora. Sobrepõe-se a todas as outras paradas, que desta vez o mundo assumiu a máxima extensão do fio elástico.

Assistindo a esta lenta e submissa passagem, abstraiu-se por um momento da sua própria encenação - que tinha coberto este mundo até à última das paisagens -, e pensou, Foi difícil submeter a tão grave solução o meu reduzido pensamento, que é encoberto pela mesmíssima névoa que engole a mesma grande parada, não fosse esse o mesmo lema dos meus homens. Um terror que engole a transigência da ilusão e uma ilusão que esconde o escuro do terror. Também eu estou iludido como os homens que encenei, é que tal autor tem de entrar na mesma vida de tais personagens, e o mundo? o mundo esse, deve ser o palco exacto para tal vida, ou não fossem os meus homens os mesmos homens e os seus sonhos os meus sonhos.