30 outubro, 2009

São assim as raias

Sempre que contas as vezes em que abriste a porta, subiste as escadas num atropelo, arrombaste o quarto e lançaste o teu corpo para fora da janela, pesado como uma folha já sem força, que balança facilmente com o vento, até eu me arrepio. Não procures mais; nem facilites o encontro do que ficas para aí esperando, nessa ânsia desmedida de ter outra janela a que te possas atirar ainda com mais força, mas que tenha também alguém no mesmo quarto para te puxar pela cintura e deitar-te nessa cama.
Mas olha, não sujes mais a fonte em que te banhas, nem desiludas mais a tua própria água na esperança de um rio (que tardemente se duvida aparecer), para que possa livrar as suas mágoas, e escorrer nele como uma água livre e solta, em direcção a uma água ainda mais una, mais toda, e mais completa. É que no mar também há cardumes tão grandes que bastam para que te percas, e há vagas tão enormes que te enrolam contra as rochas, e noites tão compridas que calam toda a luz e escurecem todos os lugares onde ela hoje tinha ainda chegado, e recantos tão vagos que te fazem recordar se já ali houve vivalma, e grutas tão revoltas que te fazem sentir medo de lá naufragar.
Não procures mais, nem tentes. Abre já os teus braços, digo-te, e deixa que as coisas te apareçam nesse colo, durante esta chuva, e que, por uma vez, não sejas tu a fazer a tua mágoa de procurar, mas que tenhas o prazer de encontrar, de encontrar coisas tão boas, que nem julgas verdade serem tuas. Mas abre-me esses braços já, digo-te, e nem te escondas, nem julgues ser mais, nem menos. Só então lhes pega, nessas coisas tão doiradas; e vai, e vive.

04 outubro, 2009

Normal

A mulher desconhece a sua loucura. Não é a insanidade o que ela leva: é apenas a vontade de se desviar. Ao olhar para trás, repara que os passos se tornaram lentamente mais pesados, pesadamente mais lentos, numa descontinuidade que evolui cansadamente. O monte anuncia à aproximação do fim. Não há um horizonte, e atrás da curva permanece um suave rumor de um desconhecido que não virá a tornar-se verdade. A mulher vem a arrastar uma cadeira por aquela longa relva e ao chegar à sombra de um enorme castanheiro, senta-se e não pensa mais nada. Alguém se lembrou que só se desviando do trilho comum, chegará onde nenhuns chegaram.