06 abril, 2011

A espera de becket

A sala está escura de uma vontade antiquíssima que há. Uma vontade que parece não ter raízes, que, por exclusão de partes, só pode ter vindo de dentro, e que, por defeito, só pode ser sua. Porque não há mais homens. Mais tarde percebeu que as vontades não vêm de dentro, a não ser talvez a primeira vontade do mundo, que por ser a primeira talvez fosse sua vontade sê-lo precisamente - uma vontade -, e por causa dessa sua vontade de ser o que é, ou o que quer ser, e isto se é que não são ambas o mesmo, os homens passaram a ter muitas vontades que nascem, não de si mesmos, mas das outras vontades que já existem por causa de outras vontades também e que, portanto, estão fora deles próprios.


A sua vontade tem aparências de ter nascido por si mesma. Tem ares de ter concebido um filho de si, uma aberração terrível que se enrola nela própria com infinita lânguidez. Um umbigo sem cordão, contorcido à volta da ausência que sente bem no centro da vida, na barriga magra que se encosta contra as costas, com muito medo do que a confronta, o combate contra à vida pequenina e medrosa que não descende, cuja herança nasce de cima e vem por aí abaixo pelo corpo todo, imobilizá-lo.


Mas as aparências enganam, ou pelo menos iludem certamente, durante muito ou pouco tempo, com moderada ou profunda intensidade. A sua vontade nasceu com certeza de fora, de uma mãe pequenina como a sua vida e monstruosa. Ai mãe que não te vejo. És tão pequenina ai mãe. Agora é que te sinto, estás aí fora, e a minha vontade nasce só de o saber, mesmo não te vendo, porque me basta pensar para acreditar. Estás aí fora mãe? Ai mãe, tu és o vazio que está cá dentro. Mãe, mãezinha, minha querida e monstruosa mãe, não sei se cheira a quarta ou a quinta-feira, diz-me tu. A que é que cheira aí fora? O mundo ainda existe? Não conheço outros homens mas sei que eles estão aí fora contigo, só a vós vos sei mãe. Se os outros homens me soubessem... e tu mãe? Tu sabes que eu existo? Se a vós me pudesse deixar escorrer ansiosamente nem que pelo cano da sanita, e escorrer com grande ânsia pelo esgoto todo até chegar ao vosso acolhimento.