03 setembro, 2011

Orestes ficou apaixonado e esse foi o mal do mundo

A floresta urze. O mosquiteiro mantém uma presença eléctrica na obscuridade do pátio e vai registando a frequência da noite, que já vai longa. O som regular da natureza acompanha cerimonialmente a passagem da noite, num luto contido que faz o caminho para a entregar ao túmulo evidente, pela iminência do amanhecer.

O corpo de Orestes faz peso contra a terra, empurrado de cima para ela; as fúrias abrem buracos no caminho para que Orestes se afunde na terra, e a terra enche os seus próprios buracos para que Orestes persista. Ele enrosca-se sobre si na humidade da noite, fechado sobre o colo, para não ser atormentado pelas fúrias - as suas costas estremecem por essa possibilidade, porque não tem outras costas para proteger as suas. Orestes resta em frente ao pátio, na possibilidade de um jardim que ainda não chegou a sê-lo. Orestes já não está à espera de vingança. Este é outro Orestes, aquele que aprendeu com a irmã as responsabilidades do sacríficio. A memória de Ifigénia é um consolo, uma companhia, nesta noite solitária. Orestes já não está sequer à espera de ser feliz. Orestes só espera pelo altar, na iminência do amanhecer, que o levará até ele.

A interminável noite negra desce até ao fundo dos poços e contamina a água que alimenta as consciências. Nesta noite, o próprio vento reduz-se à gravidade de um sopro, que atravessa a floresta em anunciação. A folhagem treme sem rigor, e empreende a órgia da natureza; milhares de folhas assobiam o seu lamento singular - todas juntas abrem então o útero ao som neutro e regular da floresta. Pontualmente, ouvem-se gestos distantes que rasgam a folhagem, gestos implícitos à própria floresta. O som regular da natureza introduz uma dormência palpitante, a consciência de direitos contrários.

O corpo de Orestes resta sobre a terra, à falta de vontade. Resta sobre essa angústia ignóbil que o aperta e o imobiliza entre o conflito de direitos opostos. O coração palpita-lhe na palma das mãos, prestes a ceder à cegueira. É então que do próprio recolhimento a que estava prostrado, seu último empenho, começam também a sucumbir as últimas gotas de auto-defesa. Orestes perde o amor próprio e transcende a necessidade de chão. Agilmente atira-se sobre o vazio que é o isolamento moral, incumbido de uma responsabilidade absoluta sobre a sua decisão. E assim, à falta de mágoa sequer, ergue-se apenas por civilidade, enquanto a luz necessária do amanhecer se entrepõe entre o seu dever e a noite. Afasta-se da frequência estável do mosquiteiro para ultrapassar o perímetro incerto da floresta. É preciso encher os pulmões antes de cometer esse passo.

A ressonância da floresta é idêntica à de uma caverna, como se tivesse entrado na verdadeira profundidade do mundo: o lento rastejar húmido dos animais sobre os restos mortais da vegetação; todas essas presenças desconhecidas e duvidosas que coabitam sinceramente dentro do maquinar vão da natureza. Ele caminha sobre essas incertezas, afugentando o medo de não saber o caminho que pisa. A luz cinzenta e fumegante da manhã arranha a neblina. Orestes arrasta o seu corpo entre as ruínas monstruosas da natureza, como se fosse uma encomenda de crónicas criminosas que é preciso ir entregar ao altar; um caixote de fatalidades que é preciso sacrificar pela limpeza moral da humanidade.

Ao chegar ao altar, Orestes depõe o seu corpo nu perante a fonte do rio, para cometer o sacrifício do seu amor. A luz banha violentamente o seu corpo e a sua dúvida, como se fizesse dele um troféu de ouro, exemplar da redenção do homem à sua própria condenação, à soberania do mundo inflectida contra a sua própria individualidade. A redenção de Orestes à maquinaria dos astros.

A manhã traz consigo os sintomas da oferta de Orestes. O sol olímpico insurge-se da terra nocturna para se erguer solenemente sob o rumor de um céu trágico, enquanto Orestes se entrega à mesma sepultura terrena. Ele obriga-se a asfixiar a sua própria existência pela insuportabilidade do compromisso. Além disso, não só o sacrifício do seu amor, mas mais ainda o do seu corpo, implicam a estabilidade da existência humana: Orestes sufoca a sua vida pela soberania do sol; Orestes apaga a sua presença neste mundo como se abafasse uma vela, para assegurar a clareza da pólis, para descansar as consciências, firmes da evidência do mundo, da competência da verdade de estado, da regularidade da vida, inquistórias de um crime que é apenas, no fundo, uma fatalidade. Orestes desce então às catacumbas da terra, e enterra-se voluntariamente no túmulo imperativo que o sol deixou livre para si.

Na fonte do rio, Orestes arranca a sua pele. Com as próprias mãos nuas, deposita-a num ritual lento sobre a superfície das águas e ela desce o ribeiro em direcção à foz. Os ventos incertos envolvem-no e dissipam a sua pele na aragem da manhã. O corpo de Orestes inclina-se sobre a corrente para reconhecer o seu reflexo e mergulha o rosto no fluxo. Em direcção aos céus executa os últimos cerimoniais, concluindo a sua oferta. Com os braços prostrados Orestes morre inclinado sobre a água, enquanto o seu amor se despede silenciosamente do corpo para ir desaguar longe da cidade.

A cidade acorda e os restos de Orestes sobrevoam a humanidade.