20 novembro, 2008

Voz passiva

Às dezasseis horas, doze minutos e dezoito segundos do dia vinte e um de maio ele virou a cabeça contra a sala e olhou para lá da janela. Três segundos antes houvera um beija-flor que saltara do seu plátano no jardim e enquanto os dois segundos que levou a atingir o degrau não tinham passado, passou uma massa de vento de intensidade média a cento e vinte e três pés de altura e soprou do fundo de si para uma nuvem que deslizou sobre o ar e num tempo imperceptível houve ainda um raio que passou entre os flocos de água e resplandeceu nas penas verdes da asa do beija-flor sem que ele desse por isso, tornando-o tão belo e dourado que nem ele saberia alguma vez que o tinha sido.
Só depois o beija-flor, descendo levemente, atingiu o cimento com o mínimo som e, da janela, ele olhou-o como um espectador endoidecido mas calado. O beija-flor desceu um ou dois degraus, e entre descer mais outros dois ou três, parava à beira de cada patamar, e redescobria de todas as vezes, como que se quisesse confirmar, que se encontrava realmente no centro de onde estava. Olhou-o muito confundido com o que se passava, e entre seu vórtice interior, houve qualquer sinapse (certamente um neurónio muito génio durante a época em que viveu) que lhe ofereceu o desejo de ser tal como o beija-flor, saltando de degrau em degrau e redescobrindo-se a todo o momento sem ter a noção de que o fazia - pelo menos era isso que tinha sonhado. Descendo mais três ou quatro, o beija-flor saiu, e desapareceu atrás duma parede branca sem que ele mesmo tivesse notado. Tempo de voltar.

08 novembro, 2008

Câmara oculta



Rastejando os pés pelo chão. - assim o fazia. E no Outono - por isso esperava tanto pelo Outono -, fazia-o tal como os pássaros do sul indo em seus longos voos, precisamente com o mesmo encanto; fazia-o rastejando-os na relva, como que se mostrando às árvores frondosas que, à proporção da sua altura, imóveis eram elas, e sacudia todos esses aviões de papel pelo chão, velhos e sujos à imagem do Outono, que já antes têm o hábito de se perder enquanto descem sobre o ar, caindo em transição, e se extinguindo, por fim, de leve. Marchava, sacundindo tais aviões, de papel como as folhas, e que o são mesmo. E marchava sempre mais rápido do que no início, até que o silêncio se sucedia, em pleno.
Viajou então, à volta de trezentos e sessenta dias, e à volta dos mesmos sítios de todos os dias de sempre, ocupando o seu papel exterior. No fim de tudo, sai então do seu lugar no público, lugar de sessão, constante a todas as passagens na tela, constante como um espectador errante, e, saindo assim daí, chega perto do mundo e diz de repente:
- Não aprendi nada.
E todo o mundo, suspenso sobre si mesmo, tornando a pausa para seus gestos e discursos, esclarece:
- Aprendeste o mesmo que os outros.
E respondendo, sente que não têm pêra doce:
- Não entendo o que fazemos.
A câmara oculta dá um quarto de volta sem piscar a lente. Atenta, foca o jardim vazio e escuro, até que a noite se apaga para a verdadeira escuridão da lente fechada.