25 julho, 2011

Kafka

Descobriu cedo que estava disposto a adormecer. Não sei bem a que conclusão chegou. Às vezes julgo que tinha uma certa dificuldade em contar-me os seus sonhos. Especialmente os seus, quero dizer. Não estaria certamente relacionado com falta de lembrança. Esse seria porventura um problema meu.

Sim, fiz muitas vezes força para recordar. Depois do sono, tornava-se particularmente raro que ainda sobrasse um conteúdo decifrável, ainda que apenas em termos de causas e consequências, enfim, de continuidade, quero dizer. Quando acordava entretanto, punha-lhe de imediato sobre o peito a palma da minha mão, para convocar a sua atenção. Os meus olhos continuavam fechados sobre si, mas com incisão redobrada. Acima de tudo, queria evitar o confronto com a luz. Julgo que as minhas precauções, o meu método de tentativa e erro, não foram os mais convenientes: o desfecho foi recorrente - subitamente, todas as sensações, mesmo as mais próximas, se tornavam, assim, em vestígios sombrios do que ainda há pouco tinha vivido com veemente precisão, durante o sonho. Sentia uma revolta aguda contra a minha consciência. Uma angústia estranha de poder ter perdido a minha própria memória.

Mas como estava a dizer, julgo que a sua dificuldade em contar-me os seus sonhos - especialmente os seus, quero dizer -, devia-se então ao gesto que vem a seguir à lembrança. A minha cabeça estava enfiada na almofada, a manhã vinha apenas confirmar o repouso, e por isso podia ver com clareza, nas pontas dos seus dedos, a mesma confiança de quem está seguro da sua herança. Sim, não me poderia enganar sentindo as coisas a tal distância. Os seus pensamentos não lhe eram estranhos, a ignorância ou a angústia eram-lhe, de outro modo, alheios; ao acordar, o seu património mental dispunha-se perante si com clareza - podia seleccioná-lo como lhe conviesse, porventura até encontrar relações simbólicas entre os factos. Julgo que é dessa capacidade que lhe advém um sentido muito especial para as sensibilidades.

Contudo, no tal gesto que procede a lembrança, a dúvida começava a rondar, um fantasma rotativo cujo olhar é incidente. Então que os seus lábios ficavam entreabertos, em movimento de preparação. Havia um fio de saliva que escorria languidamente pelo lábio inferior, recordava-me certa vez o pénis, no mesmo gesto. A partir daí, podemos dizer que as coisas se eternizavam tal como estavam neste ponto.

A dificuldade para passar ao passo seguinte estava em fazer dessas sensações matéria, matéria partilhável, que pudesse ser contada. Julgo que não chegou a esse ponto, pelo menos na maior parte das vezes. E mesmo quando chegava, sentia uma certa fúria nas suas omoplatas. Era a angústia de não haver as palavras justas ao seu sonho. E note-se que há uma diferença entre não haver e não encontrar, pois no primeiro caso a angústia é com certeza mais profunda. Mas ainda que as houvesse, a essas palavras, correríamos posteriormente o risco de não terem para mim o mesmo significado, então a comunicação não seria novamente efectuada com rigor. A sensação peculiar do sonho passa então a ser vã e incerta, não havendo uma outra consciência para confirmar a sua realidade.

Andava desiludido. Tomava o pequeno-almoço balançando a colher nas bordas da tigela. Passou a deixar sempre um resto. Começava a duvidar da ideia que tinha das coisas. Começava a recear que a sua sensibilidade fosse desmedida, começava a ter medo da medida do seu próprio bom senso. Estava assustado por se comover tão facilmente, por ser invadido regularmente por sensações estrangeiras e também por outras já habitués - sensações que já nem precisavam de pedir o menu: entravam pela porta como se a casa já fosse sua.

Um dia, decidimos ler um livro antes de adormecer. Depois, retomámos a leitura na página 49, se bem me lembro. De manhã, um dia, não evitei a luz, olhámo-nos simplesmente, olhos nos olhos, num confronto que ia até ao fundo de nós mesmos. Quando pus de novo a palma da mão sobre a omoplata esquerda senti com clareza que já não havia fúria naquele corpo. Não dissemos nada. Nos mesmo olhos haviam os outros reflectidos.