‘Mas a fotografia, essa rompe o ‘estilo constitutivo’; ela é sem futuro (é esse o seu
patético, a sua melancolia); nela não existe qualquer protensão, enquanto o cinema é
protensivo e, à partida, absolutamente nada melancólico (o que é que ele é, então? Pois
bem, ele é apenas ‘normal’, como a vida).’ (BARTHES, 1980: 100)
De acordo com Barthes, é justamente a impossibilidade de ler uma fotografia que a destitui
de qualquer vocação apaziguadora. Impossível de ler, a fotografia torna-se uma ferida
incurável. Impossível de transitar, retida no tempo, ela não promove a resolução, insiste
apenas no desgosto, na queimadura.
Poderíamos dizer então que é ao promover o luto, a expressão da dialéctica, a produção do
sentido, que o cinema seria a arte mais capaz de preservar um afecto, de mencionar um
investimento que não queremos perder. Porque, tal como Barthes acaba por concluir, a
retenção da fotografia no tempo, a sua incapacidade para manifestar o devir, constitui-a não
só numa primeira instância como recordação mas também, em breve, como contra-
recordação. Isto é, o facto de ela ser uma imagem suspensa, uma paragem viva, alimenta
em nós uma impressão distinta, exorbitada, e por isso já deformada, do investimento
original. No fundo, ao insistir sobre a coisa viva, a fotografia acaba por torná-la ícone, fazer
dela uma aparência firmada, fixada, multiplicada em intensidade: ‘Imóvel, a fotografia reflui
da apresentação à retenção’.
Pelo contrário, o cinema não firma, mas revela. É ao assistir ao gesto da revelação que
podemos voltar a aceder verdadeiramente à coisa, porque aquilo que a caracterizava em
vida era justamente o facto de se estar a revelar. Da mesma forma, o referente fotográfico
feito cinema não afirma a sua existência anterior por falta de tempo para insistir. Ele está
sempre a transitar e por isso verdadeiramente ele apenas pode apresentar-se, certificar-se,
garantir um presente que idealmente tanto traz consigo o off do passado como se atira para
o futuro.
Por outras palavras, poderíamos dizer que aquilo que essencialmente caracterizava em vida
a coisa era acima de tudo o seu comportamento, a sua postura, a sua vocação – tudo isto
muito antes do seu aspecto. É nessa dimensão invisível que o nosso investimento se
âncora, e é isso portanto que verdadeiramente não queremos perder: procuramos formas
que nos permitam convocar o afecto original.
Contudo, nem sempre o aspecto da coisa conserva essa natureza interior, nem sempre o
referente convoca a verdade essencial daquilo a que remete: muitas vezes aliás a imagem
pode ser uma imagem morta, perigosa, mentirosa.
Ora, o cinema também trabalha com o mesmo referente fotográfico e está também por isso
necessariamente preso ao mundo das aparências mas, ao contrário da fotografia, tanto
evita por um lado a constituição do ícone, porque dá-nos sempre o referente em
deslizamento, como, por outro, promove a constituição do símbolo, porque através da
montagem introduz a possibilidade de um gesto linguístico que vem oferecer uma coloração
particular ao espectro antes indecifrável, ilegível, da fotografia.
‘A linguagem da acção é, portanto, a linguagem dos signos não simbólicos do presente,
e, no presente, todavia, não há sentido, ou, se o há, é subjectivamente, de um modo por
isso incompleto, incerto e misterioso.’ (PASOLINI, 1967: 73)
Esse estar a revelar-se da coisa viva encontra pois no cinema uma analogia eficaz porque
nele a representação (ou manifestação) dos signos é realizada a partir do seu próprio
trânsito. Contudo essa revelação é ainda informe como na vida, isto é, sem estrutura, e por
isso existe numa procura.
‘Todo o momento da linguagem da acção é uma busca. Busca de quê? De uma
sistematização relativamente a si própria e ao mundo objectivo e, por conseguinte, uma
busca de relação com todas as outras linguagens da acção (...). Enquanto estes
sintagmas vivos não forem postos em relação entre eles (...) [as linguagens da acção] são
linguagens truncadas e incompletas, praticamente incompreensíveis. Que deverá então
acontecer para que elas se tornem completas e compreensíveis? Que as relações que
precisamente procuram, quase tacteando e balbuciando, possam ser enfim
estabelecidas.’ (PASOLINI, 1967: 73-74)
Ora, estas relações não podem ser estabelecidas através da justaposição dos presentes
mas sim apenas através de um verdadeiro projecto de coordenação dos planos, de modo a
tornar o presente passado. Essa coordenação é o gesto que constitui a figura do narrador:
aquele que faz uma avaliação cuidada dos vários segmentos subjectivos de acção de modo
a descobrir entre eles os que, na sua relação global com os outros, são verdadeiramente
significativos, e que assim descobre a ordem da sua sucessão verdadeira, dissolvendo a
subjectividade existencial de cada pedaço para dar lugar à objectividade efectiva que
atravessa o conjunto – isto é, no fundo, transformando o presente em passado, ou, de outro
modo, tomando o presente em conta como alguma coisa que já passou.
Pasolini formula então inclusivamente no seu próprio texto o salto qualitativo em relação ao
entendimento de Barthes que aqui procuro descrever:
‘O cinema é substancialmente um plano-sequência infinito, como exactamente o é a
realidade perante os nossos olhos e ouvidos (um plano-sequência infinito que acaba com
o fim da nossa vida): e este plano-sequência, em seguida, não é mais do que a
reprodução da linguagem da realidade, do que a reprodução do presente. Mas a partir
do momento em que intervém a montagem, ou seja, quando se passa do cinema ao
filme, sucede que o presente se torna passado.’ (PASOLINI, 1967: 74-75)
É como se Barthes, ao enunciar a normalidade do cinema relativamente à vida, ofuscado
pela melancolia, não tivesse compreendido que era nele mesmo que podia encontrar uma
resolução para a monstruosidade que reconhece absolutamente à fotografia: a
impossibilidade frustrada do luto, a exclusão do trágico, da purificação, da catarse.
Ou seja, só podemos conceber o estabelecimento de um nexo para com aquilo que já
aconteceu, que já sofreu a sua realização total. A fotografia verdadeiramente não se torna
passado, ela apenas se esvazia do presente, sustendo-se, inspirando sem voltar a expirar:
respirando em falso.
Ora, tudo aquilo que ainda está em devir nega ser apropriado por um discurso, até porque
esse discurso, desde que não seja dotado de poderes premonitórios, denuncia rapidamente
a sua própria ineficiência face à actualização do signo, sempre assumindo novas colorações
à medida que devém em vida:
‘[A acção do homem] tem falta de unidade, quer dizer de sentido, enquanto não se
encontra concluída. Enquanto Lenine estava vivo, a linguagem da sua acção era ainda
em parte indecifrável, porque permanecia ainda em estado de possibilidade, e era assim
modificável por eventuais acções futuras. Em suma, enquanto tem futuro, ou seja uma
incógnita, um homem permanece por se expressar. (...) Enquanto eu não morrer,
ninguém poderá garantir conhecer-me deveras, ou seja, poder dar um sentido à minha
acção, que, por isso mesmo, enquanto momento linguístico, permanece mal decifrável. É
assim absolutamente necessário morrer, porque enquanto estamos vivos falta-nos
sentido e a linguagem da nossa vida é intraduzível. (...) A morte realiza uma montagem
fulminante da nossa vida, ou seja, escolhe os seus momentos verdadeiramente
significativos e coloca-os em sucessão, fazendo do nosso presente, infinito, instável e
incerto, e por isso não descritível linguisticamente, um passado claro, estável e certo e
por isso bem descritível linguisticamente. Só graças à morte a nossa vida nos serve para
nos expressarmos.’ (PASOLINI, 1967: 75-76)
Ora, essa descrição linguística é no fundo a constituição de um universo simbólico. Quando
a morte opera sobre a vida, os acontecimentos que a configuraram encontram finalmente
um grau elevado de expressão porque podem ser considerados entre si e por isso
articulados de acordo com uma tonalidade que, na impossibilidade de se continuar a
manifestar, torna-se efectiva e final. Só podemos pois ultrapassar o luto quando esse
exercício de articulação estiver concluído, quando formos capazes de exercer o papel do
narrador e conceber um eixo vertical para a sucessão variável de acontecimentos que deu
suporte à linha horizontal da vida. A identificação desse cruzamento, que é no fundo um
encontro, é a única forma que temos para convocar o investimento original. Em última
análise, descobrir a linha vertical é descobrir onde reside esse investimento, que coloração é
que ele, em potência, já tem. É descobrir qual é o seu nome para podermos nomeá-lo em
ocasião de o convocar: encontrar o termo justo à ideia latente.
A revelação do cinema não corresponde então apenas à revelação da vida. Ela incorre ainda
na possibilidade de ser resolvida quando ele realiza, através da montagem, a passagem ao
filme. O filme é por isso a proferição de uma palavra que dá estrutura ao longuíssimo plano-
sequência da vida: constituir o filme significa ser capaz de mencionar um termo.
Procurar a descrição linguística da vida não é por isso necessariamente constituir um
discurso sobre ela, mas justamente encontrar-lhe a estrutura. O símbolo não está então na
própria revelação mas sim na coordenação que lhe dá tom.
Se só podemos falar da vida depois da morte, aquilo que o cinema faz então é atribuir uma
estrutura aos acontecimentos de acordo com uma tese final que não terá de corresponder
necessariamente à morte do protagonista mas à resolução de um certo conflito que a
determinada altura se ocupou do seu sofrimento, porque o filme encerra a vida no momento
em que termina.
Ora, a possibilidade de leitura, a configuração de uma cultura, é no fundo, a única
possibilidade de voltar a ter acesso ao investimento original, de lhe conceber um substituto
à altura. A leitura corresponde em si mesma à constituição de um objecto simbólico e é por
isso a única verdadeira salvação para o nosso desgosto de poder ficar apenas com a
aparência perdendo para sempre o núcleo, o afecto.
Por outro lado, a doçura inocente da fotografia torna-se pois rapidamente numa profunda
violência.