08 dezembro, 2013

Para fazer o luto

‘Mas a fotografia, essa rompe o ‘estilo constitutivo’; ela é sem futuro (é esse o seu patético, a sua melancolia); nela não existe qualquer protensão, enquanto o cinema é protensivo e, à partida, absolutamente nada melancólico (o que é que ele é, então? Pois bem, ele é apenas ‘normal’, como a vida).’ (BARTHES, 1980: 100)

De acordo com Barthes, é justamente a impossibilidade de ler uma fotografia que a destitui de qualquer vocação apaziguadora. Impossível de ler, a fotografia torna-se uma ferida incurável. Impossível de transitar, retida no tempo, ela não promove a resolução, insiste apenas no desgosto, na queimadura.
Poderíamos dizer então que é ao promover o luto, a expressão da dialéctica, a produção do sentido, que o cinema seria a arte mais capaz de preservar um afecto, de mencionar um investimento que não queremos perder. Porque, tal como Barthes acaba por concluir, a retenção da fotografia no tempo, a sua incapacidade para manifestar o devir, constitui-a não só numa primeira instância como recordação mas também, em breve, como contra- recordação. Isto é, o facto de ela ser uma imagem suspensa, uma paragem viva, alimenta em nós uma impressão distinta, exorbitada, e por isso já deformada, do investimento original. No fundo, ao insistir sobre a coisa viva, a fotografia acaba por torná-la ícone, fazer dela uma aparência firmada, fixada, multiplicada em intensidade: ‘Imóvel, a fotografia reflui da apresentação à retenção’.
Pelo contrário, o cinema não firma, mas revela. É ao assistir ao gesto da revelação que podemos voltar a aceder verdadeiramente à coisa, porque aquilo que a caracterizava em vida era justamente o facto de se estar a revelar. Da mesma forma, o referente fotográfico feito cinema não afirma a sua existência anterior por falta de tempo para insistir. Ele está sempre a transitar e por isso verdadeiramente ele apenas pode apresentar-se, certificar-se, garantir um presente que idealmente tanto traz consigo o off do passado como se atira para o futuro.
Por outras palavras, poderíamos dizer que aquilo que essencialmente caracterizava em vida a coisa era acima de tudo o seu comportamento, a sua postura, a sua vocação – tudo isto muito antes do seu aspecto. É nessa dimensão invisível que o nosso investimento se âncora, e é isso portanto que verdadeiramente não queremos perder: procuramos formas que nos permitam convocar o afecto original.

Contudo, nem sempre o aspecto da coisa conserva essa natureza interior, nem sempre o referente convoca a verdade essencial daquilo a que remete: muitas vezes aliás a imagem pode ser uma imagem morta, perigosa, mentirosa.
Ora, o cinema também trabalha com o mesmo referente fotográfico e está também por isso necessariamente preso ao mundo das aparências mas, ao contrário da fotografia, tanto evita por um lado a constituição do ícone, porque dá-nos sempre o referente em deslizamento, como, por outro, promove a constituição do símbolo, porque através da montagem introduz a possibilidade de um gesto linguístico que vem oferecer uma coloração particular ao espectro antes indecifrável, ilegível, da fotografia.

‘A linguagem da acção é, portanto, a linguagem dos signos não simbólicos do presente, e, no presente, todavia, não há sentido, ou, se o há, é subjectivamente, de um modo por isso incompleto, incerto e misterioso.’ (PASOLINI, 1967: 73)

Esse estar a revelar-se da coisa viva encontra pois no cinema uma analogia eficaz porque nele a representação (ou manifestação) dos signos é realizada a partir do seu próprio trânsito. Contudo essa revelação é ainda informe como na vida, isto é, sem estrutura, e por isso existe numa procura.

‘Todo o momento da linguagem da acção é uma busca. Busca de quê? De uma sistematização relativamente a si própria e ao mundo objectivo e, por conseguinte, uma busca de relação com todas as outras linguagens da acção (...). Enquanto estes sintagmas vivos não forem postos em relação entre eles (...) [as linguagens da acção] são linguagens truncadas e incompletas, praticamente incompreensíveis. Que deverá então acontecer para que elas se tornem completas e compreensíveis? Que as relações que precisamente procuram, quase tacteando e balbuciando, possam ser enfim estabelecidas.’ (PASOLINI, 1967: 73-74)

Ora, estas relações não podem ser estabelecidas através da justaposição dos presentes mas sim apenas através de um verdadeiro projecto de coordenação dos planos, de modo a tornar o presente passado. Essa coordenação é o gesto que constitui a figura do narrador: aquele que faz uma avaliação cuidada dos vários segmentos subjectivos de acção de modo a descobrir entre eles os que, na sua relação global com os outros, são verdadeiramente significativos, e que assim descobre a ordem da sua sucessão verdadeira, dissolvendo a subjectividade existencial de cada pedaço para dar lugar à objectividade efectiva que atravessa o conjunto – isto é, no fundo, transformando o presente em passado, ou, de outro modo, tomando o presente em conta como alguma coisa que já passou.
Pasolini formula então inclusivamente no seu próprio texto o salto qualitativo em relação ao entendimento de Barthes que aqui procuro descrever:

‘O cinema é substancialmente um plano-sequência infinito, como exactamente o é a realidade perante os nossos olhos e ouvidos (um plano-sequência infinito que acaba com o fim da nossa vida): e este plano-sequência, em seguida, não é mais do que a reprodução da linguagem da realidade, do que a reprodução do presente. Mas a partir do momento em que intervém a montagem, ou seja, quando se passa do cinema ao filme, sucede que o presente se torna passado.’ (PASOLINI, 1967: 74-75)

É como se Barthes, ao enunciar a normalidade do cinema relativamente à vida, ofuscado pela melancolia, não tivesse compreendido que era nele mesmo que podia encontrar uma resolução para a monstruosidade que reconhece absolutamente à fotografia: a impossibilidade frustrada do luto, a exclusão do trágico, da purificação, da catarse.
Ou seja, só podemos conceber o estabelecimento de um nexo para com aquilo que já aconteceu, que já sofreu a sua realização total. A fotografia verdadeiramente não se torna passado, ela apenas se esvazia do presente, sustendo-se, inspirando sem voltar a expirar: respirando em falso.
Ora, tudo aquilo que ainda está em devir nega ser apropriado por um discurso, até porque esse discurso, desde que não seja dotado de poderes premonitórios, denuncia rapidamente a sua própria ineficiência face à actualização do signo, sempre assumindo novas colorações à medida que devém em vida:

‘[A acção do homem] tem falta de unidade, quer dizer de sentido, enquanto não se encontra concluída. Enquanto Lenine estava vivo, a linguagem da sua acção era ainda em parte indecifrável, porque permanecia ainda em estado de possibilidade, e era assim modificável por eventuais acções futuras. Em suma, enquanto tem futuro, ou seja uma incógnita, um homem permanece por se expressar. (...) Enquanto eu não morrer, ninguém poderá garantir conhecer-me deveras, ou seja, poder dar um sentido à minha acção, que, por isso mesmo, enquanto momento linguístico, permanece mal decifrável. É assim absolutamente necessário morrer, porque enquanto estamos vivos falta-nos sentido e a linguagem da nossa vida é intraduzível. (...) A morte realiza uma montagem fulminante da nossa vida, ou seja, escolhe os seus momentos verdadeiramente significativos e coloca-os em sucessão, fazendo do nosso presente, infinito, instável e incerto, e por isso não descritível linguisticamente, um passado claro, estável e certo e por isso bem descritível linguisticamente. Só graças à morte a nossa vida nos serve para nos expressarmos.’ (PASOLINI, 1967: 75-76)

Ora, essa descrição linguística é no fundo a constituição de um universo simbólico. Quando a morte opera sobre a vida, os acontecimentos que a configuraram encontram finalmente um grau elevado de expressão porque podem ser considerados entre si e por isso articulados de acordo com uma tonalidade que, na impossibilidade de se continuar a manifestar, torna-se efectiva e final. Só podemos pois ultrapassar o luto quando esse exercício de articulação estiver concluído, quando formos capazes de exercer o papel do narrador e conceber um eixo vertical para a sucessão variável de acontecimentos que deu suporte à linha horizontal da vida. A identificação desse cruzamento, que é no fundo um encontro, é a única forma que temos para convocar o investimento original. Em última análise, descobrir a linha vertical é descobrir onde reside esse investimento, que coloração é que ele, em potência, já tem. É descobrir qual é o seu nome para podermos nomeá-lo em ocasião de o convocar: encontrar o termo justo à ideia latente.
A revelação do cinema não corresponde então apenas à revelação da vida. Ela incorre ainda na possibilidade de ser resolvida quando ele realiza, através da montagem, a passagem ao filme. O filme é por isso a proferição de uma palavra que dá estrutura ao longuíssimo plano- sequência da vida: constituir o filme significa ser capaz de mencionar um termo.

Procurar a descrição linguística da vida não é por isso necessariamente constituir um discurso sobre ela, mas justamente encontrar-lhe a estrutura. O símbolo não está então na própria revelação mas sim na coordenação que lhe dá tom.
Se só podemos falar da vida depois da morte, aquilo que o cinema faz então é atribuir uma estrutura aos acontecimentos de acordo com uma tese final que não terá de corresponder necessariamente à morte do protagonista mas à resolução de um certo conflito que a determinada altura se ocupou do seu sofrimento, porque o filme encerra a vida no momento em que termina.

Ora, a possibilidade de leitura, a configuração de uma cultura, é no fundo, a única possibilidade de voltar a ter acesso ao investimento original, de lhe conceber um substituto à altura. A leitura corresponde em si mesma à constituição de um objecto simbólico e é por isso a única verdadeira salvação para o nosso desgosto de poder ficar apenas com a aparência perdendo para sempre o núcleo, o afecto.
Por outro lado, a doçura inocente da fotografia torna-se pois rapidamente numa profunda violência. 

02 junho, 2012

Mudo


E depois olhou à sua volta e viu que o universo estava a chorar compulsivamente, e que estava sozinho para afagar o seu pranto, o universo inteiro, e que os abismos estavam prestes a implodir o seu desgosto para cima dos mundos todos, porque já não o suportavam mais, e as estrelas, as estrelas minguavam sob o crepúsculo dos céus, e encolhiam durante os séculos para que a sua luz não fosse neles reflectida e eles não fossem portanto iluminados, e desviavam-na para o infinito, para os mundos que já desconheciam. E no fundo das convulsões épicas, os homens restavam, assim como os vermes, rendidos à melancolia do universo, depondo os seus sonhos como se as túnicas dos seus corpos sobre a superfície plana da morte que é para eles o próprio infinito.
Viu nesta desgraça tal beleza que ficou obcecado pela sua sensualidade e sentiu medo de si próprio por isso. E depois tremeu de assombro. E ficou, ficou definitivamente, e a vida nele tinha de tal modo congelado que já não estava a transitar no tempo sequer, e agora era apenas uma forma.
E depois um silêncio devastador, um silêncio nuclear, um silêncio ainda mais árido do que a extensão dos desertos, capaz de os engolir, que desconcertava a própria vida, e que era a resposta a todas as orações que foram consagradas desde o princípio.
Um silêncio que acompanhou eternamente a existências das coisas, e que não dizia se já cá tinha estado antes da vida ou depois dela.
Restava-lhes ouvir no silêncio o próprio manifesto que ele declara quando soa.

27 novembro, 2011

A partir de aubanne

Subimos a povoação até à beira da colina.
Seguimos a estrada sinuosa que descarrila no sossego ambíguo da floresta.
Ouvimos a presença de água que corre, soubemos de imediato, a água soluça nas saliências, contudo não tem soluços.
Pensámos em seixos que moderam a corrente, que obrigam a água a cometer difracção em redor dos seixos, porque a água se bate não reflecte, a água só mantém, contornando, seixos que pontuam a sua agitação linear em direcção ao fim.
Pensámos em seixos e reconhecemos que de facto a existência de seixos e de uma corrente que os menciona é certa em determinado ponto da floresta, pelo menos parcialmente, na sua dimensão sonora.
Sabemos que existe porque o ouvimos, contudo aquilo que vemos não o inclui.
Vemos um fragmento de floresta preenchido pela multiplicação dos troncos resistem à colina tendencialmente vertical, que nos remete para um universo genérico de floresta, que simultaneamente nos informa sobre esta floresta e que contudo não é esta floresta.
Aquilo que vemos apenas se relaciona portanto com a corrente de uma forma bastante simbólica e indutiva, contudo somos levados a crer na sua existência. O fora de campo preenche o enquadramento e informa-nos acerca de alguma coisa que nos promete a possibilidade de ser concretizada mas que não o será necessariamente - é indispensável romper o perímetro da floresta com o corpo e mover esse organismo de placas motoras e de placas receptoras, sendo que incluímos na última a possibilidade de concretizar visualmente as nossas expectativas - e é com essa intenção que progredimos.
Tomando mais atenção, ouvimos ainda o ruído branco da floresta, que até certo ponto confere consistência ao facto de existirmos num mundo que desse modo adquire um carácter verosímil. O ruído branco é cantado pelos milhares de minúsculas folhas que assobiam indiscriminadamente uma frequência distinta, e então somos perseguidos pelo espectro total do som, que continuamente se anula e duplica, conforme as suas fases se cruzam.
Chegamos ao ribeiro, à corrente.
Dizemos tome o meu coração, é só por si que ele bate.

03 setembro, 2011

Orestes ficou apaixonado e esse foi o mal do mundo

A floresta urze. O mosquiteiro mantém uma presença eléctrica na obscuridade do pátio e vai registando a frequência da noite, que já vai longa. O som regular da natureza acompanha cerimonialmente a passagem da noite, num luto contido que faz o caminho para a entregar ao túmulo evidente, pela iminência do amanhecer.

O corpo de Orestes faz peso contra a terra, empurrado de cima para ela; as fúrias abrem buracos no caminho para que Orestes se afunde na terra, e a terra enche os seus próprios buracos para que Orestes persista. Ele enrosca-se sobre si na humidade da noite, fechado sobre o colo, para não ser atormentado pelas fúrias - as suas costas estremecem por essa possibilidade, porque não tem outras costas para proteger as suas. Orestes resta em frente ao pátio, na possibilidade de um jardim que ainda não chegou a sê-lo. Orestes já não está à espera de vingança. Este é outro Orestes, aquele que aprendeu com a irmã as responsabilidades do sacríficio. A memória de Ifigénia é um consolo, uma companhia, nesta noite solitária. Orestes já não está sequer à espera de ser feliz. Orestes só espera pelo altar, na iminência do amanhecer, que o levará até ele.

A interminável noite negra desce até ao fundo dos poços e contamina a água que alimenta as consciências. Nesta noite, o próprio vento reduz-se à gravidade de um sopro, que atravessa a floresta em anunciação. A folhagem treme sem rigor, e empreende a órgia da natureza; milhares de folhas assobiam o seu lamento singular - todas juntas abrem então o útero ao som neutro e regular da floresta. Pontualmente, ouvem-se gestos distantes que rasgam a folhagem, gestos implícitos à própria floresta. O som regular da natureza introduz uma dormência palpitante, a consciência de direitos contrários.

O corpo de Orestes resta sobre a terra, à falta de vontade. Resta sobre essa angústia ignóbil que o aperta e o imobiliza entre o conflito de direitos opostos. O coração palpita-lhe na palma das mãos, prestes a ceder à cegueira. É então que do próprio recolhimento a que estava prostrado, seu último empenho, começam também a sucumbir as últimas gotas de auto-defesa. Orestes perde o amor próprio e transcende a necessidade de chão. Agilmente atira-se sobre o vazio que é o isolamento moral, incumbido de uma responsabilidade absoluta sobre a sua decisão. E assim, à falta de mágoa sequer, ergue-se apenas por civilidade, enquanto a luz necessária do amanhecer se entrepõe entre o seu dever e a noite. Afasta-se da frequência estável do mosquiteiro para ultrapassar o perímetro incerto da floresta. É preciso encher os pulmões antes de cometer esse passo.

A ressonância da floresta é idêntica à de uma caverna, como se tivesse entrado na verdadeira profundidade do mundo: o lento rastejar húmido dos animais sobre os restos mortais da vegetação; todas essas presenças desconhecidas e duvidosas que coabitam sinceramente dentro do maquinar vão da natureza. Ele caminha sobre essas incertezas, afugentando o medo de não saber o caminho que pisa. A luz cinzenta e fumegante da manhã arranha a neblina. Orestes arrasta o seu corpo entre as ruínas monstruosas da natureza, como se fosse uma encomenda de crónicas criminosas que é preciso ir entregar ao altar; um caixote de fatalidades que é preciso sacrificar pela limpeza moral da humanidade.

Ao chegar ao altar, Orestes depõe o seu corpo nu perante a fonte do rio, para cometer o sacrifício do seu amor. A luz banha violentamente o seu corpo e a sua dúvida, como se fizesse dele um troféu de ouro, exemplar da redenção do homem à sua própria condenação, à soberania do mundo inflectida contra a sua própria individualidade. A redenção de Orestes à maquinaria dos astros.

A manhã traz consigo os sintomas da oferta de Orestes. O sol olímpico insurge-se da terra nocturna para se erguer solenemente sob o rumor de um céu trágico, enquanto Orestes se entrega à mesma sepultura terrena. Ele obriga-se a asfixiar a sua própria existência pela insuportabilidade do compromisso. Além disso, não só o sacrifício do seu amor, mas mais ainda o do seu corpo, implicam a estabilidade da existência humana: Orestes sufoca a sua vida pela soberania do sol; Orestes apaga a sua presença neste mundo como se abafasse uma vela, para assegurar a clareza da pólis, para descansar as consciências, firmes da evidência do mundo, da competência da verdade de estado, da regularidade da vida, inquistórias de um crime que é apenas, no fundo, uma fatalidade. Orestes desce então às catacumbas da terra, e enterra-se voluntariamente no túmulo imperativo que o sol deixou livre para si.

Na fonte do rio, Orestes arranca a sua pele. Com as próprias mãos nuas, deposita-a num ritual lento sobre a superfície das águas e ela desce o ribeiro em direcção à foz. Os ventos incertos envolvem-no e dissipam a sua pele na aragem da manhã. O corpo de Orestes inclina-se sobre a corrente para reconhecer o seu reflexo e mergulha o rosto no fluxo. Em direcção aos céus executa os últimos cerimoniais, concluindo a sua oferta. Com os braços prostrados Orestes morre inclinado sobre a água, enquanto o seu amor se despede silenciosamente do corpo para ir desaguar longe da cidade.

A cidade acorda e os restos de Orestes sobrevoam a humanidade.

16 agosto, 2011

Einstein visto de uma paisagem com quarto

O som anda a trezentos e quarenta metros por segundo. Foi segundo essa promessa que deixei a janela aberta durante a noite, e fiquei à espera de sonhar alto. E nessa expectativa a noite passou, incerta. O nevoeiro anuncia a manhã difusamente, num prolongamento da mesma incerteza com que a noite passa, e que me faz sentir que acordar é também e apenas a continuação de estar a dormir, e que assim sendo a cama é um leito e a vida um túmulo, ou o presságio de um túmulo.

E procuro da janela, nos vestígios da paisagem matinal, a presença de narrativas sonâmbulas porventura. O som anda a trezentos e quarenta metros por segundo e já devia ter regressado para me confirmar que tinha partido. Todas as existências do mundo condensam-se numa paisagem espessa que não devolve a memória dos meus sonos sintomáticos desta noite. E por essa falta certifico o fracasso das minhas esperanças. Pudesse eu acordar e ler claramente no relevo do mundo os oráculos que regressam do passado aos meus sonhos e me despedem do futuro para voltar a vivê-lo postumamente como se já não o tivesse sabido em sonhos, e esquecido em sonhos, esses tais, cheios da vida inteira, recorrentes e furtivos como a mulher que olha e parte, deixando a sombra da partida e a falta da mulher. Mas o mundo deixa assim de ser relevo, atravessado por um nevoeiro espesso, e então é só imagem, e nas imagens não há narrativas, e torna-se então coerente que não as encontre.

Devolvo o depósito do meu corpo à resignação do espaço exíguo do mesmo quarto, que desde sempre tem atravessado o tempo linearmente, como os corpos fazem, todos os corpos do mundo, as massas imóveis fechadas no interior do mesmo mundo, que vão à velocidade do mesmo quarto imóvel, em direcção. Pudesse eu dobrar a continuidade das massas e sair do mundo para ir em sentido inverso pelo mesmo mundo, à velocidade das coisas exteriores. Viver em permanente velocidade, como a luz vive, porque se afasta do espaço a tempo incerto, e por isso a luz não envelhece, e tem sempre o brilho de um outro sol exterior e planetário, que deixa a cada vez que é de ser o mesmo, sobre a sua própria imaterialidade, que é apenas brilho enfim. E é assim que a luz existe mesmo na sua inexistência.

Não tivesse eu memória e para mim o mundo seria a sucessão estanque de cada paisagem, como para a luz é cada sol. A sucessão finalmente livre da causa e do efeito. A vida fotográfica e plana, bidimensional e descritiva, despojada da narrativa e da desgraça, porque o relevo implica sempre sombras.

06 agosto, 2011

I went to the woods / Will you ever return

Perdi-me longamente. Entretanto não quis dormir de janela fechada, senti um calor cansado do lado de dentro, um calor de ficar fechado. Fiquei longamente perdido, portanto. Deixo a janela aberta para ficar a ouvir o mundo. E está a chover e por isso o mundo entra com sensatez e sem euforia. Eu fui aos bosques. Eu estava a cair nas colinas. Eu fui aos bosques para sugar o tutano da vida. O mundo entra, sensato. A chuva abate-se com coragem sobre os campos, como quem se atira do céu e vem gritando desde lá de cima enquanto vem contra o mundo, vendo tudo muito sensatamente, como quem vê de cima. O quarto escorre a falta de alguém para ouvir. Tenho dificuldade em estancar a ponta do dedo e entretanto escorre a falta de alguém. O mundo faz companhia de janela aberta, meio-aberta, julgo. A queda voluntária, ir com mais impulso que é para dar a volta.

02 agosto, 2011